domingo, 27 de julho de 2008

O adeus de João Pinto

Nasci numa família de benfiquistas. O meu pai jogou enquanto jovem na ‘equipa da Rua dos Soeiros’ como costumo dizer. Recordo-me de saltar nos seus braços em miúdo ao ritmo das vitórias dos encarnados e de sofrer com a final de Estugarda, agarrado a uma pequena bandeira de pau com tecido grosso. 25 de Maio de 1988. Não esqueço esta memória de infância e a tristeza na cara do meu pai, desiludido com o falhanço de Veloso. Alguém tinha de falhar, é um jogo e não pode ser prolongado para sempre. Alguém tinha de ceder, mas logo o Benfica? Foi um golpe duro naquele quarto andar com vista para o cemitério, na zona oriental de Lisboa. Anos mais tarde, no embate contra o AC Milan em Viena, o golo no tempo regulamentar de Rijkard veio preparar os corpos para a derrota no apito final. Afinal, nada de trágico, os italianos eram a melhor equipa europeia e mundial à época.

Desde cedo acompanhei as vitórias e as derrotas do glorioso, empurrado pela pressão familiar do progenitor. Cheguei mesmo a ir ao Estádio da Luz, com a tal bandeira de pau, apoiar a equipa da casa. Por vezes, apostávamos no início do jogo o resultado final, cuja fé num gelado ou batatas fritas, quase sempre girava em torno dos 5 ou 6 a zero. Eram tempos de confiança cega no potencial concretizador benfiquista e no prémio, caso acertasse. O meu pai ganhava mas eu recebia a recompensa por entrar no jogo.

Eu ia ao estádio. Via os jogos em casa. Mas não estava convencido de que queria ser benfiquista para sempre. Havia qualquer coisa que me impedia de sentir por dentro uma alma rubra. Aquela era a única realidade que conhecia de perto e sem ligar muito ao clube não deixava o meu pai mal. O meu irmão envergava na perfeição a sucessão futebolística lá em casa mas eu não. Já o meu avô era sportinguista, desde sempre. Falava-me dos jogadores antigos do clube de Alvalade: os cinco violinos com os míticos campeonatos ganhos à força de dezenas de golos infligidos aos adversários; a mãe do Travassos que vivia junto ao estádio num rés-do-chão; as viagens de eléctrico dos jogadores com os adeptos, sempre de botas de travessões presas pelos atacadores, colocadas às costas, em amena cavaqueira; o argentino Seminário, um dos melhores ponta-esquerda que vira jogar em Portugal, vindo do Barcelona; a proximidade dos campos dos rivais, o do Benfica conhecido pela ‘caixa de fósforos’, todo ele com bancadas em madeira e em terrenos oferecidos pelo Sporting, num tempo de relacionamento amistoso entre emblemas. Fixei sempre estas histórias e as imagens antigas das revistas de futebol com nomes britânicos, entre elas a ‘Stadium’, com ilustrações de jogadores leoninos de cabelo cheio de brilhantina.

No dia 14 de Maio de 1994 a manhã acordou chuvosa. Talvez um prenúncio do que viria a acontecer mais tarde. Mais um derby lisboeta. Fui com o meu avô para Alvalade bem cedo e assim garantir os bilhetes de sócio. Apanhámos o autocarro na Almirante Reis, o que terminava mesmo junto à segunda circular. Havia a fé de que desta vez o Sporting poderia alcançar uma vantagem importante rumo ao título. Para isso a vitória sobre o Benfica era fundamental. Tal não aconteceu. Recordo aqui a única vez que vi o meu avô levantar-se antes do final de um jogo em Alvalade. Após o 2-6, com uma majestosa exibição do João Pinto, disse-me: “vamos embora!”, para meu espanto. Ainda vimos de pé, junto da saída, o golo de penalti marcado pelo Balakov. Mas o mal já estava feito. O passado é feito de memórias, com pessoas lá dentro. O João Pinto é uma delas, para tristeza do meu avô.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial

Site Meter